quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Um conto de ano novo

Foi no dia 30 de dezembro. De 2017. Um ano meio merda. Não se pode dizer que o ano foi meio merda. Tem que expressar gratidão. Mesmo se a merda superar as coisas boas. 2017 foi bem merda. Antes desse ano você não amava seu emprego, mas estava satisfeito com ele. Nesse ano você viu compromissos não serem honrados pelos outros. A situação financeira entrou em estado de indignidade. Você nem entendeu se ainda tinha emprego no final. Mas você tem que ser grato. Use isso como um mantra. Foi o ano que você perdeu uma pessoa muito importante. Para você, uma mãe. Aquela que agregava a família muito grande e muito dispersa. E você quase não pode vê-la antes da partida. Decidiram que você não podia viajar. Foi o empenho de uma pessoa muito querida que fez com que você pudesse vê-la. E o empenho nem foi para isso, mas resultou nisso. E você a viu tão bem e sorridente. Você levou consigo alguém, que por motivos que a vida explica havia se afastado. Mas você sentiu e mostrou que era importante. E foi muito divertido e cheio de amor. E meses depois, quando da partida, você recebeu o agradecimento do alguém que foi com você. E isso encheu seu coração de amor. E na partida, aquela que sempre agregava a família grande e dispersa, foi capaz de juntá-la novamente. E o que era para ser só triste, acabou em lágrimas, afeto e risadas.

Mas era dia 30, você e ele começam a assistir a série que deve ter sido liberada no dia 29, para botar a pá de terra e declarar: que ano mais merda foi 2017. Vocês assistem o primeiro episódio. Ok, interessante. Tão longo. O segundo, impecável. Identificação humana e tecnologia. Parece a série que vocês conheciam. Resolvem ver o terceiro: WTF. Difícil se recuperar disso. O quarto episódio parece mais leve. Impossível não haver identificação pessoal. Ainda mais se você passou por tantos relacionamentos bons, loucos ou tóxicos que mais pareceram test-drives para o seu relacionamento equilibrado e saudável. O quinto episódio não precisava existir. Que droga é essa. Você diz para ele: vamos beber. Só bebendo para aguentar isso. Beber o quê. Vamos terminar aquele vinho. Mas só tem uma taça. Vamos beber mesmo assim. Vocês beberam a taça tão rápido. Pega o espumante que está na geladeira desde o ano passado. Deve ter sido esse o erro. Não beber o espumante na virada do ano. Teve o ano inteiro para beber. Por isso o ano foi merda. Se tivéssemos bebido esse espumante. Melhor bebermos antes que o ano acabe. Imagina o que pode acontecer se bebermos no ano que vem. Não. Não dá para arriscar. O que pode ter acontecido com um espumante que ficou um ano na geladeira. Deve estar bem gelado. Você lembra que o espumante até mudou de casa. Isso foi meio bom. A mudança. Você se apega a mudança como lembrança boa. Um lugar mais próximo da civilização que facilitou a rotina. Meio bom, agora falta o silêncio e a segurança. Você gosta de silêncio. Você gosta da segurança dos lugares onde ninguém vai. O último episódio vai indo bem, mas é pesado. Bem pesado. E você só consegue dar risada. Você ri copiosamente. Você até acha que vai morrer de rir. Parece que espumante de um ano na geladeira deixa bêbado fácil. Ou é o fato de você não beber quase nunca. Ou o fato de você estar com a barriga meio vazia. Mas não, ele também ri sem parar. Ele bebe de vez em quando. Tem algo nesse espumante. Ainda bem. Talvez seja o que 2017 merece. Risada de perder o ar.

Você e ele vão para a cama. Vocês assistiram todos os episódios da série que nessa temporada não estava tão boa assim. Deve ser porque foi a temporada de 2017. Você ri. 2017 estragou até as séries fantásticas. Está tudo rodando. Você diz que tem que colocar o pé para fora da cama e tomar uma dipirona. Dá onde isso. Você lembra que foi um relacionamento tóxico que te ensinou. Realmente tem que ser grata a tudo. Como você teria aprendido que para o quarto parar de rodar tem que botar o pé para fora da cama e tomar uma dipirona. O quarto parou de rodar. Perfeito. Gratidão pelo relacionamento tóxico. E seu inconsciente começa a operar. Você começa a lembrar dos relacionamentos que teve até chegar aqui. Culpa do quarto episódio e do quarto rodando. E você pensa em como conseguia beber antes sem ter uma crise de riso ou o quarto ficar rodando. Você pega no sono em meio a pensamentos de relacionamentos e aprendizados e por que você deveria ser grato a eles. Você não sabe se o que lembra é como realmente foi. Tem relacionamentos que só dá para agradecer pelo livramento. Definitivamente.

Você acorda no dia 31 e já é de tarde. Efeitos do espumante. Você não vai fazer ceia de ano novo como já não fez de Natal. Você não está a fim de comemorar nada nesse ano. No ano passado vocês passaram a virada do ano sentados no chão ao lado do guarda-roupa que o cão escolheu para se esconder dos fogos. Deve ser por isso que o espumante não foi bebido. Não foi nada glamoroso. Você compra somente as uvas que são sua única superstição. Doze uvas, um pedido para cada mês. Você não lembra de onde tirou isso. Mas você faz isso sempre. Mesmo que passe a virada na praia. Lá vai você com suas doze uvas. Na sua região já estão estourando fogos de artifício há dias. Você não sabe o porquê disso. O cão já está em catatonismo avançado. O coração descompassado. Você nem imagina onde vai acabar passando a virada do ano. Vai ter muitos fogos. Chega a hora. Vocês se veem dentro do banheiro, os cães, música alta, o espumante deste ano, as doze uvas. Os cães sofrem. Você come as uvas tão rápido que esquece os pedidos. Era um para cada mês. Você não fez nenhum. Ao menos o espumante foi bebido. Ninguém ficou bêbado. Deve ser por causa das uvas. Os fogos duram uma hora. Uma hora dentro do banheiro. Um final debochado para um ano merda. 

2018 vai ser menos merda. O espumante foi bebido. No fundo há gratidão por todo o aprendizado. Também pelas coisas boas. Houve coisas boas. Entre o que você pretende, está ser melhor sempre. Não o ano, você. Só você pode ser melhor, o ano não. Faltaram os pedidos das uvas. Você sempre fazia isso. Mas quando foi que deu certo?


Luciana escreveu apenas um texto no blog no ano passado. Mas foi 2017, dá um desconto! Como uma resolução de ano novo, além de ser melhor sempre, estão os textos. Que poderão ser contos como esse, não necessariamente, ou totalmente, relacionados a realidade.

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