terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Onde Tem Oferta, Tem Demanda ou Laeticia No Mundo das Drogas

Minha experiência com drogas não é de hoje. Já se passaram dezesseis anos desde o dia em que lidei com drogas pela primeira vez. E, não, não foi da forma como vocês estão pensando. Eu nunca usei drogas. Não drogas ilícitas, já que o álcool, embora a sociedade não o veja assim, também é uma droga e há muito tempo se tornou um problema de saúde pública.

Eu tinha só quatorze anos quando passei na prova do Colégio Técnico da UFMG. Todo mundo ficou feliz. Eu fiquei feliz: aquela aprovação me livrava das ameaças maternas de estudar no Instituto de Educação, um dos meus maiores pesadelos, pois tem a maior densidade demográfica de espera-maridos da face da Terra. Até o meu lado mais patricinha sempre preferiu a companhia masculina e o Colégio Técnico me parecia um ambiente muito mais agradável. Mas eu também fiquei com medo porque já tinha ouvido falar que o Coltec era um “antro de drogas” e a história de Pedro Bandeira ainda estava muito fresca na minha memória. Eu era bem bobinha mesmo. Perguntei minha mãe como ela tinha coragem de me por pra estudar num colégio onde a droga rolava solta. Ela me respondeu que não era bem assim, mas que, se fosse, cabia a mim decidir se iria entrar naquela ou não, e que, embora nem sempre ela conseguisse, tentava me criar para o mundo. E lá fui eu para o mundo das drogas hehe Mal sabia mamãe que não só era assim como era beeeeeeeeeem assim. De cara no primeiro ano uma colega de turma foi apreendida no Edifício Maleta comprando cocaína. Ela era da minha idade.

Olha pra vocês verem as ironias da vida. O pessoal com quem eu me dei bem era justamente a turma dos maconheiros. A galera tocava violão, lia muito, gostava de música de verdade, rolavam altos papos. Éramos uma meninada bacana e até os professores viam isso. Tínhamos notas boas, algumas ruins, mas o saldo era positivo. Logo o pessoal sacou que a minha era música e literatura e nunca, em momento algum, nenhum deles sequer falou: dá um tapinha aí, pra você experimentar. O mais legal era isso. Todo mundo se respeitava. Fala sério? Quer coisa melhor do que ser respeitado? Eu era a única caretona da Árvore da Paz. Mas ninguém fora da turma acreditava. Ainda mais que eu andava com umas roupinhas da feira hippie, sempre com uma bolsa de crochê de lado.

Acabaram os felizes anos do Coltec e me vi na Tailândia, fazendo intercâmbio. Lá estava eu novamente no paraíso das drogas, dez meridianos pra frente, vendo o mundo do alto dos meus dezoito anos de idade. Desta vez não me enturmei com os maconheiros do intercâmbio, embora eles me achassem “cool”. Não que eu tivesse mudado minha concepção de que cigarro e álcool fazem mais mal do que maconha, mas sei lá. Eu tinha uma idéia de que eu era o cartão de visitas do meu país e que a cagada que eu fizesse seria vista como uma cagada de brasileiro, não a cagada da Laeticia. Acabei virando intercambista modelo. No Year Book a mensagem que os AFS´ers deixaram pra mim foi que eu deveria beber mais e cuidar menos dos outros. Mas uma colega nossa se deu muito mal lá. Voltou pra casa antes da hora: grávida, com risco de ter contraído AIDS e viciada em ópio. Tinha dezesseis anos.

Na PUC as coisas foram bem diferentes sob certo aspecto. Acabei indo parar na Faculdade de Direito, onde o povo é chato pra burro, mas usa muito menos droga do que na Engenharia e na Comunicação, por exemplo. O prédio da Comunicação era ao lado do de Direito e aquele cheiro doce enjoativo invadia a sala de aula todos os dias. Chegava a ser cômico ver professores promotores de justiça e delegados sentindo aquela maré e fazendo cara de paisagem enquanto falavam do Estado Democrático de Direito!! Nesta fase da vida minhas amizades já estavam bem consolidadas e, confesso, ali na faculdade eram poucas. Colegas eu tinha vários, mas meus amigos de verdade eram os da época do colégio mesmo. Tava todo mundo ralando de dia pra pagar faculdade de noite; a maioria fumava uns backs, mas não era nada demais. Maconha era relax e se alguém ia além, eu nunca soube.

Foi nesta época que comecei a refletir de verdade sobre o uso de entorpecentes. Acabei me interessando sobre crime organizado e aí entrei de vez no mundo das drogas. Vou dizer pra vocês duas conclusões a que cheguei depois de dez anos pesquisando crime organizado e tráfico de drogas.

Uma. A leniência do Estado permitiu que o tráfico criasse um Estado paralelo. Onde ele se instalou, criou novas leis e quem mora no morro não tem opção: ou, no mínimo, se omite, ou entra no jogo. Senão, tá morto. Isso é assim há muito mais de dez anos, mas só agora que a violência está diariamente batendo na porta da classe média é que estamos reconhecendo a existência do problema. Como se antes ele também não fosse um problema de todos.

A segunda conclusão é uma lei de mercado. Só não vê quem não quer. Só existe oferta onde há demanda. Se ninguém comprar bicicleta, as fábricas de bicicleta vão falir, concordam? Também funciona assim com droga. Se ninguém comprar droga, o tráfico vai vender pra quem? Tem cara de pau que põe a cara na TV pra falar que “esses favelados fumadores de crack estão matando nossos filhos”. Será que alguém acredita realmente que o viciado é quem realmente representa a maior parcela do faturamento do tráfico? Porque tráfico de drogas é negócio, meu chapa. Se não der lucro, fecha as portas, ou melhor, a boca. Porque será que não tem apreensão de crack no Rio? Observem. Toda vez que apreendem droga no Rio é maconha, cocaína e droga sintética. Não tem crack. E não tem porque o traficante não deixa entrar crack na área dele. Porque crack destrói rápido e dá pouco lucro. Crack é barato, quem consome é na grande maioria o pobre. As pesquisas estimam que uma pedra de crack custa algo em torno de dois a cinco reais, dependendo da “qualidade”. Maconha da boa pra fazer uns dois baseados custa uns 20 reais. O grama da cocaína custa o mesmo que o grama do ouro. E um comprimido de ecstasy, meu amigo, custa trinta reais. Vocês acham mesmo que favelado tem grana pra fumar o que pras famílias pobres significa o sacolão do mês? Cheirar um grama de ouro? Dançar a noite inteira nas boates da moda embalado por droga sintética? Não, chegado!! Quem tem grana pra isso somos nós.

Eu não vou ser hipócrita de dizer aqui que droga não traz problemas. Mas o homem se entorpece desde sempre. E acho pouco provável que isto mude. Álcool faz mal, tabaco faz mal, gordura faz mal, sal faz mal, açúcar faz mal, conservante faz mal. Alguém aí deixa de consumir isso tudo? Fora o tabaco, o resto eu consumo feliz!! Mas ainda tem muita gente cavalgando feliz no mundo de Marlboro.

Então vamos encarar o problema de frente. Ou reprime direito, ou regulamenta essa merda. E isso depende de atitude da sociedade. Vamos acabar com a hipocrisia e tentar resolver o problema com números. Estatística tá aí pra isso. O que não dá é pra ficar esperando o Capitão Nascimento subir o morro e salvar a galera. Até porque, meu amigo, um dia o Capitão Nascimento pode estar não lá no morro, mas dentro da sua casa.


Laeticia é uma criminalista que odeia hipocrisia. Atrasou seu passeio e está escrevendo agora porque passou ontem o dia todo na Delegacia de Tóxicos pra que três usuários não fossem autuados como traficantes: todos gente como a gente.


10 comentários:

Andrea disse...

Laeticia,

Muito oportuno e sensato seu texto. Também penso como você: ou reprime decentemente, ou regulamenta.

Mas infelizmente sabemos que se as coisas estão como estão, e chegaram a este ponto, é porque tem muuuuita gente grande, e de poder, que se beneficia de alguma forma com o tráfico. Como sempre, cada um olhando pro seu prórpio umbigo, sem se preocupar em fazer o que é melhor para todos...

Angel disse...

Ei Maria!
Depois que se conhece gente como a gente, como você bem disse, usando drogas é que se percebe a dimensão dessa questão.

É isso aí Maria, hipocrisia não tá com nada.

Beijos!

Anônimo disse...

Laeticia!

Onde você cursou Direito??

Acredito que a área biológica, de qualquer universidade Federal ou Particular, seja a que mais consuma drogas...

É incrível, mas quem está lá para nos ajudar, nos salvar... Os médicos, dentistas, fisioterapeutas... São os maiores usuários...

Continue escrevendo assim. Dá gosto de ler.

Anônimo disse...

Gostei muito do texto.

Não tenho opinião totalmente formada sobre a legalização, mas sei, que ela, por si só, não resolve nada, proibir ou legalizar deve vir acompanhado de todo um aparato de políticas sociais. Segue mais ou menos como o debate sobre a legalização do aborto.

Coerentes palavras...

Anônimo disse...

Pois é, só entra quem quer. E não tem essa de ser ingênuo não.Qualquer criança hoje sabe que o uso de drogas é fator de risco. Ilícitas ou não, são o maior problema de saúde de saúde pública do país. E a droga ilícita responde por mais de noventa por cento das estatísticas criminais.
Mas como vc disse, só há oferta onde há demanda. Legalização e tributação somadas a conscientização em massa talvez fossem positivas a longo prazo. E que os pais não fossem tão liberais (ou comodistas), mais disciplina e responsabilidade e menos psicologia.
Só pagando prá ver.

Sisa disse...

Adoro essa minha irmã criminalista. Adoro a forma como ela explica as coisas. Adoro quando eu tenho uma opinião mal fundamentada e ela me explica como as coisas funcionam para eu ou fundamentar melhor ou mudar de idéia. Eu acompanho esse "Laeticia no mundo das drogas" faz um tempão e, embora não tenha opinião formada, sei o tanto que ela estudou pra formar a dela. Tenho certeza que um dia isso tudo vira uma dissertação, uma tese e eu morro mais de orgulho ainda!

Anônimo disse...

Ei Laeticia,

é realmente muito complicado essa questão de legalizar ou naõ, e acredito que a briga maior será entre o Estado e os traficantes: imagina o que acontecerá se grande parte do dinheiro vira impostos?


Eu sugiro que vc escreva um texto (impecável como sempre! :) ) sobre como ocorreu a legalização da maconha na Holanda, que tal? :)

Beijos!

Advokete disse...

Pessoas, eu não costumo comentar os comentários que fazem sobre minha "produção literária" (hehe), mas este tema vale a pena.

Primeiro fiquei assim meio surpresa de ter parecido que sou decididamente favorável à legalização de drogas. Bem, não que eu não ache isso factível, mas sinceramente, não sei se seria uma boa hora. É um assunto muito sério e deve ser debatido com seriedade e profundidade por todos os setores da sociedade antes de haver qualquer projeto no sentido da regulamentação. O que eu acho é que debate deve ser posto em pauta. E a sociedade, hipocritamente, não leva o assunto a sério. Só pensa na segurança de sua própria bunda. Então, vamos debater. Enquanto não surge o debate, eu me recuso terminantemente a fazer uso de qualquer substância ilícita e patrocinar essa violência absurda que vivemos (embora reconheça que uma eventual proibição do consumo de chocolate me colocaria na posição de subideira de morro).

Segundo, eu não pretendi defender que, por ser "gente como a gente" que consome e dá lucro ao tráfico, deva haver regulamentação. Apenas quis demonstrar que o cara que mora na favela não é o culpado pelos males originados da droga. Compreendo muita mais o pobre sem perspectiva se meter nessa barca furada do que o filhinho de mamãe que estudou em escola particular caçar vender bolinha em rave. A maioria das pessoas que estão subjugadas pelo tráfico (obedecendo pra não morrer)escolheriam outro caminho se tivessem opção, mas não têm.


Terceiro (e mais engraçado) cursei Direito na PUC Coração Eucarístico. Por mais incrível que possa parecer, a turma de Direito usa muito, mas muitop mesmo menos droga que o pessoal da Engenharia e da Comunicação hehe Mas concorde que o pessoal de Biológicas é que pega mais pesado. Esqueci de falar deles hehe. E as políticas "subsidiárias" realmente têm que fazer parte do pacote. A matéria é complexa, por isso a necessidade do uso da estatística e do debate.

Quarto, acho que isso não vira nem dissertação, nem tese, Ci. É porque esse assunto acabou virando meu hobbie hehe Não consigo delimitar o problema!!! Mas fica fria que quem sabe não sai a dissertação e a tese sobre Direito Penal Econômico? A monografia eu já te prometo pro fim do mês (acabei me metendo a estudar mais e aí, já viu, quanto mais se estuda, menos se sabe e mais se quer estudar... meu sofá comido e a mesa da sala estão lotados).

A legalização da maconha na Holando foi uma matéria bem complexa pra eles também. Nem nos países onde há uma liberalidade maior a matéria é pacífica. Acabei me pegando mais aos problemas nacionais porque temos a particularidade de ser um país continental. Regulamentar maconha aqui é bem diferente que regulamentar maconha na Holanda, que é bem menor que o Pará. Mas vou achar uns artigos e te mando, Fafá. O assunto é bem bacana. Na Holanda tem "carta de maconhas" igual tem "carta de vinhos" e vc pode comprar colocando moedinha na máquina igual refrigerante aqui hehe Diversidade cultural é uma coisa impressionante.

Bem, que bom que consegui provocar reflexão. O texto saiu mais como um desabafo e acabou provocando uma reação muito melhor.

Portanto, mulheres de trinta, debatei!! E promovei o debate entre os seus!!

Paula disse...

Oi Laeticia.
Este texto seu está perfeito, como todas já disseram acima rsrs.
Eu não acho que legalizar qualquer entorpecente seja a solução para o Brasil, nem agora, nem daqui a uns bons anos; acho que falta muita maturidade para o povo brasileiro entender como isso funciona. Aliás, falta maturidade para entender quase tudo que acontece (isto fica para depois)...
Concordo com você em dizer "não" à hipocrisia. Quem financia o tráfico não é o pobre (trabalhador ou não) mas sim o(a) garoto(a) descolado, estudado, com um mundo de oportunidades pela frente. E isso me revolta demais! Por que enfiar a vida no buraco, por conta de uma porcaria qualquer, sem se dar a mínima chance de ser uma pessoa de verdade?

PS: Bacana sua postura e sua consciência de nação quando fez seu intercâmbio!

Professora Vanessa disse...

Ei, Laeticia,
gosto muito da maneira como você explica as coisas. Sabe, me preocupo demais com esse mundo caduco no qual resolvi enfiar minha filha. Penso ser esse assunto um daqueles que permeiam a a questão da educação de bases familiar e escolar, mas no final das contas é uma questão de escolha também. Parabéns por sua postura!
Um abraço, Vanessa.

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