quarta-feira, 11 de junho de 2008

Rápido e devagar

Foi tudo muito rápido, como costumam dizer. Porém, a sensação contrária de câmera lenta que vem junto dá um nó na cabeça e depois que passa a memória confusa lembra de algo estilo Matrix.

Disseram que eu gritei antes de acontecer, não me lembro bem. Acordei milésimos de segundos antes de tudo, como se alguém sussurrasse em meu ouvido: “acorda, não é tua hora, estamos aqui, mas vocês vão mesmo passar por isso”. As duas batidas da frente do carro na mureta da estrada foram tão lentas que me parecia haver tempo de dizer uôooooo, uôooooo, como adorava fazer no parque de diversões quando muito pequena. Não senti o carro virando, mas logo veio aquele barulho de navio que se contorce no fundo do mar, misturado com o rangido de giz ruim no quadro negro e fagulhas de ferreiro. Ao mesmo tempo o filminho. O da minha vida. É verdade, ele passa mesmo nestas horas. O que quer que detone o play é que nos faz ter certeza da seriedade da situação. Porém, não lembrar direito deste filme depois que já passou me fez ter certeza de que não é algo simplesmente randômico: alow, você ficou, não foi embora, não precisa lembrar do filme, não desta forma, não ainda. Do meu lado meu amor xingando em voz alta. Praguejando muito. Tudo ao mesmo tempo, rápido e devagar. Ele diz não lembrar disso também, mas eu lembro bem, inclusive da vontade que me deu de rir na hora, pois eu pensava que era incrível estar com todo o corpo preso apenas por um pedacinho de pano cruzando meu peito, bunda e costas no ar, sem encostarem-se a nada, e o asfalto rolando e reclamando e esquentando a um palmo dos meus olhos arregalados, mas a quilômetros de distância d e tirar a minha vida. Espera aí, mas ele é bem mais alto que eu! Ai medo! Há tá xingando? Então está bem, ufa, quando acaba isso? Rápido e devagar.

O segundo mais longo de todos foi olhar para trás e ver as pernas da minha amiga amada para todos os lados. Deveriam ter quinze pares de pernas ali, espalhados. Gritei rápido o nome dela duas vezes. Silêeeeeeeeennnnnnnnciooooooo. Ai meu Deus, meu Deus, meu Deus. Tô aqui! UUUUUUUUUUUFFFFFFAAAAAAA. Não me assusta assim guria. Conte até três, todos fora do carro de uma vez (pela mesma janelinha da frente). Heim? Como assim? Também não sei, mas foi. Maravilha esse tal instinto que anda tão démodé, mas que para nos deixar vivos sabe bem o que fazer. Hora da revista. Um, dois, três. Estamos todos aqui. Não, não falta nada, nenhum pedaço, nenhum arranhão. O que? Como assim? Pois é. E aquela poça vermelha ai? Ai, ai, ai, meu amor você se machucou (pânico)? Perái deixa ver... Eu não! Como assim? Há, é o maldito suco de uva que estava dentro do carro.

Hora de estar grata. Grata, grata, grata, muito grata pela vida. Hora de dizer obrigada. Obrigada meu Deus, por nos carregar no colo no meio deste furacão. Por logo atrás da gente vir o caminhão devagarzinho, que foi parando na curva e mostrando para todo mundo: espera, calminha, problemas à frente. Obrigada por estarmos ilesos. Tão incrivelmente sãos, tão incrivelmente incólumes, virgens, imaculados, recém-nascidos. Obrigada pelo pobre Volverine, que viveu tão pouco, mas por ser tão robusto salvou nossa vida. Obrigada por nada de dentro do carro ter nos atingido (que estava lotado de quinquilharias, garrafas de vidro, de azeite, de pimenta, mapas, bolsas, violão – nunca mais). Obrigada pela solidariedade das pessoas, do casal de dentistas que nos ajudou a sinalizar a estrada e fazer as devidas ligações, do motorista de táxi que se preocupou em não nos deixar dormir e foi simpático até mesmo andando por estradas terríveis nunca dantes por ele navegadas e morrendo de medo.

Nestas horas é que a gente presta atenção nas estatísticas e escuta no rádio que houve tantos e tantos acidentes. Que tantas e tantas pessoas morreram. E nós estamos lá, inexplicavelmente inteiros. Mas como, se não vínhamos rápido, se não teve motivos? Foi a curva traiçoeira de uma estrada desconhecida? Não importa. Foi ali que não perdemos a vida. Cada um reagiu da sua forma e em seu tempo. Uns imediatamente desesperados e piegas, outros dias depois, em choque. Fica entre nós uma cumplicidade de sobreviventes que estreita nossas relações. E para cada um de nós fica uma reflexão, por vezes doída, que permanece quando gostaríamos que já tivesse ido embora, da vida, das nossas escolhas de “e se tivesse acabado agora?”. Estamos bem. Estamos vivos. Graças a Deus.

Gisele Lins escreve aqui às quartas. Muito viva. E grata, muito grata pela sua vida, e pela vida dos que muito ama.

8 comentários:

Anônimo disse...

Meu Deus!!! Socooorroooo!!!

Afeeee que situação horrível!!! Mas que delícia a forma como você se expressou e extravazou tanto sentimento!!!!

Que bom que vc pode contar essa história e que todos estão bem!!!

Me emocionou!!!!

Bjo

Mariana disse...

ó ceus!
bem q vc disse hein! escapamos!
entendo mto bem todos esses seus sentimentos... eh isso mesmo... devagar rapido...rsrs
vivas! vivas!
estamos vivas!!
eeeeeee!
beijos!

Anônimo disse...

puxaaaa!! que sufoco que vcs estao passando..vc e a mariana!!

mas graças a Deus nao aconteceu nada de tao grave!

Tbm achei muito descontraida a forma que vc contou o caso!!

abraços!

Unknown disse...

Só tenho um par de pernas... mas depois que saímos do carro pareceu-me que as duas faltaram...
foi bom sobreviver.. rs

Angel disse...

Amei a narrativa! Tantos detalhes, tanta emoção...
Amei também Deus ter carregado vocês no colo nesse momento.

Beijos!

Renata disse...

Que bom mesmo que vcs todos estão bem! gostei muito da forma que escreveu, Gi!
Beijão!

Professora Vanessa disse...

Gisele,
já vivi uma situação semelhante, mas o carro não chegou a capotar. Posso imaginar o sufoco e o susto que vocês passaram. Fico feliz, muito feliz que estejam todos bem.
Abraços, Vanessa.

Anônimo disse...

Urra... (existe mesmo esse som? rsrsrs), como és capaz de por em palavras, assim, um momento de tanto feeling e nada racional?
Mestra!

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