Hoje à tarde, como faço todos os dias, entro na página do jornal local para ler as notícias e vou imediatamente à coluna do filósofo e escritor Gilmar Marcílio.
E eis que me deparo com mais um de seus textos bem escritos e que nos propõem uma profunda reflexão. O texto de hoje intitula-se "Alguém para nos escutar" e, como o próprio nome sugere, trata da carência afetiva da qual muitos de nós sofremos nos dias atuais.Decidi, então, ceder o espaço do meu post e compartilhar com todos essa belíssima reflexão:"ALGUÉM PARA NOS ESCUTAR
Andamos distraídos e excessivamente enamorados de nós mesmos
Caminhando pelas ruas do centro da cidade, sou surpreendido por um amigo que prende suavemente o meu braço e diz: “Você pode me escutar um instante, por favor?” Reencontrando-o depois de diversos meses, a intimidade de seu pedido quase chega a me assustar. Homem normalmente reservado, confessa-se em plena crise existencial. Ouço com toda a atenção de que sou capaz, tentando compreender o desespero que se apodera dele. Depois de meia hora, ele parte aparentemente apaziguado, quase redimido, como se algo que eu tivesse lhe dito representasse a salvação. Na verdade, apenas balbuciei duas ou três frases, sem importância alguma, mais para demonstrar o meu interesse do que para analisar as situações apresentadas. O que me leva a uma constatação óbvia: já não estamos mais sendo ouvidos e nos agarramos ao primeiro passante que a isso se predispõe. Não importa o que ele tem a nos dizer, o que queremos é que alguém pare e demonstre interesse pelo que acontece conosco.As formas de comunicação se expandem vertiginosamente. Nossos “amigos” virtuais são contados às centenas, quando não aos milhares. “Você não tem Facebook? Não acredito. E como faz para encontrar as pessoas?” Pergunta recorrente feita a este pobre ser que ora escreve e que não participa das redes sociais em voga. E, no entanto, todos esses que se orgulham de partilhar uma viagem a Maceió, o que comeram no almoço ou mesmo a briga mais recente com a esposa, tornaram-se incapazes de acolher quem está ao seu lado, suplicando por alguns minutos de atenção. O resultado dessa atrofia emocional é que nunca nos sentimos tão sozinhos. Casais muitas vezes preferem passar as únicas horas do dia em que poderiam ficar juntos conectados aos seus computadores. Logo mais estarão trocando mensagens on-line, mesmo a poucos metros de distância um do outro.Todas as grandes tradições filosóficas e religiosas enfatizaram a importância de ouvir, de acolher. Poucos de nós não são assaltados por algum sentimento de orfandade durante a existência. Ler um livro ajuda, ter uma família idem e mais ainda reunir-se com quem professa ideias parecidas com as nossas. Mas nada disso garante que seremos escutados, no sentido mais profundo da palavra. Que nossas dúvidas encontrarão ressonância em ouvidos alheios. Andamos distraídos e excessivamente enamorados de nós mesmos. Em busca da satisfação imediata dos nossos desejos, esquecemos que ao nosso lado pessoas palpitam e querem unicamente um modesto naco do nosso tempo. O que lhes damos, no mais das vezes, é um breve intervalo, em que a distração é a protagonista. Os consultórios terapêuticos não estariam tão cheios se cada um tivesse alguém que se predispusesse a acolher o que nos atormenta ou é causa de contentamento. Sentir é apenas uma parte da história. Partilhar nos dá a sensação de pertencimento.Não quero ser mais uma voz no coro dos descontentes. Acendo velas imaginárias todos os dias, como um exercício de gratidão pelo que tenho. Mas é difícil não perceber o grau de solidão em que muitos mergulharam. Sucesso profissional, financeiro ou mesmo afetivo nem sempre representam a proteção que nos salva do abismo da angústia. Perdidos dentro de um grande mar de escolhas, andamos sem rumo, querendo que alguém nos reconheça, dando-nos espaço para traduzir o que vai na alma. É pouco o que pedimos, mas parece ser muito para quem está ocupado ouvindo o timbre da própria voz. O que para nós muitas vezes não tem importância alguma é questão de vida ou morte para o outro.Gosto de me deslocar de mim, pensando nos universos infinitamente pequenos e infinitamente grandes. Oscilo entre os átomos e o cosmos. Isso diminui admiravelmente a importância que eu eventualmente possa me atribuir. Conjugação que me agrada e faz com que eu repita, constantemente: passarei, passaremos, passarão. Diminuo o passo em busca de mais um viajante que queira dividir comigo a surpresa de ser. A surpresa de todo ser.
(Texto de Gilmar Marcílio.
Déia escreve aos domigos e é fã incondicional dos escritos de Gilmar Marcílio
Nenhum comentário:
Postar um comentário