sexta-feira, 1 de junho de 2012

Que fazer?

PessoALL,

Não sei se vocês estão acompanhando, mas o Governo Federal reduziu os vencimentos dos médicos federais em 50%. Ou seja, se antes eles trabalhavam 20 horas para receber menos de R$1.500,00, à partir de agora trabalharão 40 horas pelo mesmo salário. Fora outros benefícios cortados e obrigações impostas. Vai chegar o momento em que nosso país não terá saúde pública por falta de médicos, já que ninguém vai querer trabalhar pro Estado. Complicado. Como o Bola é médico, temos muitos amigos médicos e a Raquel, ginecologista e obstetra muito conceituada, que abre espaço na agenda do consultório particular pra atender na rede pública por convicção, escreveu um texto que eu gostaria de tornar público. Segue abaixo. É longo, mas vale a pena.


"Era uma vez uma menina brasileira, nascida em família de classe baixa, que morou por 20 anos na beira de uma rodovia, na entrada de uma favela.
Ela era inteligente e adorava estudar. Sabendo disso, seus pais resolveram investir nos seus estudos. Abriram mão do seu próprio conforto e de suas aspirações para realizar o sonho da filha: ser médica.
Por causa de seu desempenho escolar, ela estudou por onze anos com bolsa num colégio particular. Mas os gastos com transporte e material escolar sacrificaram financeiramente seus pais.
Na escola ela sofreu bullying, por suas roupas simples, porque carregava seu material numa sacola de feira e passava vergonha na casa das colegas por não conhecer TV com controle remoto e outras modernidades da época.
Mas tudo isso valeu a pena, pois ela entrou “de primeira” numa faculdade pública. Durante a graduação, o sacrifício não foi menor: estudando em horário integral, não podia trabalhar para se sustentar e dependia do esforço dos pais, os quais também bancavam os estudos da irmã caçula.
Horas incansáveis de estudo, madrugada adentro, se privando do convívio com a família, para, finalmente, ao final de seis anos, receber seu diploma: médica!
Mais dedicação para o concurso de residência médica e ela inicia sua especialização de três anos. Depois, passa num concurso para trabalhar naquele que foi o hospital universitário federal onde ela teve toda sua formação, desde a graduação até a especialização. O salário era baixo, mas havia quatro grandes pilares de sustentação de um “castelo”: 1) trabalhar para a população carente; 2) ajudar na formação de novos médicos; 3) dedicar à ciência e 4) a estabilidade e os benefícios de um cargo público, coisa tão incomum no meio médico em geral e que lhe traria alguma segurança financeira.
Empolgada, logo entrou para o mestrado. Aí o castelo começou a desmoronar: o governo não dá a mínima pra ciência. Abandonando sua veia de pesquisadora, ela pelo menos se sentiu consolada por ter tido uma grande experiência profissional e por essa qualificação ter melhorado seu vergonhoso salário.
De alguns anos pra cá, outro pilar de sustentação do castelo desabou: enquanto os governantes – verdadeiros responsáveis pelo descaso e caos da saúde pública no Brasil – estão protegidos em seus palácios e gabinetes, os médicos, sobrecarregados e mal remunerados, ficam na linha de frente encarando a insatisfação da população. O que deveria ser apenas uma batalha contra as doenças, virou uma grande guerra: contra as condições precárias das instituições de saúde, equipes médicas desfalcadas, falta de estrutura, de medicamentos e de leitos, ameaças e agressões físicas e verbais.
Na tentativa de superar tais condições, nossa personagem precisa improvisar como o “Mac Gyver” e se munir de “super-poderes” para atender a demanda do serviço e fazer seu trabalho da melhor maneira possível.
A parcialidade da mídia corrobora para que a população se volte contra a classe médica, bombardeando os noticiários com matérias sensacionalistas. A exploração de situações protagonizadas por “laranjas podres do cesto” rotulou toda uma classe, tornando o médico um vilão. Nenhum veículo da mídia retrata o cotidiano do médico do serviço público, que luta arduamente naquela guerra e precisa ter múltiplos empregos para complementar sua renda, para sustentar os seus e fazer jus aos anos de estudo e dedicação. Nessa empreitada, ele se priva dos momentos com família e amigos. Não sabe o que é horário comercial, lazer, final de semana ou feriado.
Mas nossa personagem ainda alimenta sua alma com os pacientes que reconhecem seu trabalho. Ela se sente estimulada com a nobre função de formar médicos e especialistas. Submete-se a tais condições pensando que tem o privilégio de ter um emprego federal, com férias, décimo terceiro, aposentadoria e alguns benefícios (que são ínfimos se comparados àqueles do judiciário, por exemplo).
E então, estranha e inusitadamente, sua governante aparece com uma medida provisória que reduzirá seu salário em 50% e aos poucos extinguirá seus benefícios e plano de carreira. Bum! O castelo desabou! Uma MP tão estrategicamente bolada que a colocaria num beco sem saída. Sua reação inicial foi de indignação e revolta. Depois, começou a racionalizar e imaginar como isso afetaria seu dia-a-dia e seu futuro. Por fim, caiu em profundo desgosto, por perceber sua insignificância aos olhos do governo.
Ela olhou para trás, reviveu cada momento da sua história de esforços e sacrifícios, lembrou da privação de seus pais, pensou em cada centavo investido em sua formação, em cada hora de sono perdida, em cada dia ausente do convívio familiar. E chorou.
Olhou para frente e vislumbrou aquele hospital universitário sofrendo com exoneração em massa; profissionais extremamente capacitados abandonando seus cargos. A população sofrendo sem atendimento de qualidade num serviço terciário. Graduandos de medicina e médicos residentes órfãos de aprendizado. E se entristeceu.
Olhou num contexto mais global, tentando entender as razões de tal medida e se alertou com as mazelas de outros profissionais de saúde, dos professores, dos policias, etc. Imaginou o futuro deste país que não valoriza aqueles que são a base de uma sociedade decente e verdadeiramente rica. E teve medo.
Só não perdeu a esperança porque valoriza o ser humano. Se esse texto te sensibilizou ou te fez pensar, então há esperança. Trata-se de uma história real."

Raquel W. Santos,
Ginecologista e Obstetra

Um comentário:

Patrícia H disse...

Sou enfermeira e me sinto igualmente desvalorizada. A mídia só expõe as falhas e não mostra as condições de trabalho precárias dos serviços públicos de saúde, as cargas horárias extenuantes e a falta de respeito com o profissional que vem em forma de salário no fim do mês. Se um enfermeiro/médico/professor/policial ganhasse igual a um jogador de futebol ou político nesse país talvez considerassem até um absurdo. A base está deteriorada, não se pode pensar em chegar ao topo assim...

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