Marido sem face sempre diz que é médico por profissão, não por vocação. Ele diz que não é destes caras aficionados, que amam a Medicina mais que tudo, abnegados em suas próprias vidas em benefício dos pacientes.
Quer matar marido sem face de raiva é aparecer o personagem daquela série que o médico só sai do hospital na periferia pra comer misto e café com leite na banquinha de frente e, ao ouvir a primeira sirene, já larga a comida e corre pra salvar a vida do paciente lá dentro.
Isso é o que ele diz. Porque o que eu vejo diariamente há dezessete anos, tempo em que estamos juntos, é bem diferente.
O que eu vejo é um cara acordar todo dia às seis da manhã, quando não às cinco, se arrumar, tomar café e ir cheiroso e bem disposto para o posto de saúde em uma das cidades com menor IDH do Brasil, depois de dirigir por uma hora. Sim, não é consultório, não é hospital particular. É posto de saúde em área de risco. Marido sem face, a despeito de seu 1,90m, muitos quilos e cara de bravo, já foi ameaçado por vagabundo armado dentro do posto de saúde. Quase fiquei viúva antes mesmo de me casar e só fui saber disso muitos anos depois. Ele sabia que eu ia surtar quando me contasse e que eu ia insistir pra ele largar o posto de saúde em Ribeirão das Neves. E eu ia mesmo insistir até conseguir convencê-lo a sair de lá.
Isso era o que eu pensava que conseguiria. Hoje não tenho mais esta petulância. Uma vez fui conhecer o posto em que ele trabalhava num bairro (ainda mais) pobre de Neves. O que eu vi lá me chocou: a rua não tinha calçamento, corria esgoto a céu aberto e a luz do posto era um gato, porque tinha explodido alguma coisa e a prefeitura e a Cemig ainda não tinham arrumado. Marido sem face sentava em uma cadeira de ferro, dura, fazia um calor infernal e não tinha nem um ventilador por lá. Comprei uma cadeira decente e um ventilador, já que não podia colocar ar condicionado no consultório. O computador que tinha neste posto especifico, fui eu que doei.
E marido sem face lá, todo santo dia, sendo médico por profissão, segundo ele.
Depois de muito tempo neste posto, foi transferido para um outro, mais bem localizado (mais seguro, entenda-se). Os problemas mais graves eram os mesmos: dificuldades pros pacientes fazerem exames, a ignorância da população para aderir ao tratamento, paciente doido pra aposentar por invalidez ou pelo menos conseguir um atestadinho, vereador indo bater na porta para furar fila de atendimento para eleitor e por aí vai.
Uma vez, marido sem face teve um problema numa clínica em que trabalhou (sim, são vários "empregos") porque pedia para o paciente, se possível, realizar o exame no laboratório x, no qual ele confiava. A clínica tinha um laboratório também e houve uma celeuma porque ele não encaminhava os pacientes direto pro laboratório da clínica. Perguntei porque ele preferia o outro laboratório; disse que estava preocupado com a qualidade do exame para tratar adequadamente o paciente e não com o departamento financeiro da clínica.
Uma outra vez ouvi de um colega dele que achava um desperdício um cara do nível de marido sem face, inteligente, articulado, trabalhar no posto de saúde ao invés de abrir um consultório próprio. Eu também achava. Apesar de já ter ouvido isto de outros colegas de marido sem face, esta foi a única vez em que o questionei. E pobre não tem direito à medicina de qualidade?! Toma distraída! Quem mandou?!
Este é meu marido sem face, médico por profissão, não por vocação, segundo ele. Que me mata de orgulho todo santo dia. Que traz muito conforto e alento a quem muitas vezes não tem mais nada.
Parabéns pelo seu dia, mesmo você não tendo face.
Em tempo: parabéns a todos os médicos com quem convivo e compartilho as dificuldades!
Laeticia morre de orgulho do marido sem face todo santo dia.