quarta-feira, 8 de abril de 2020

“E no dia seguinte ninguém morreu.”

Até que enfim eu consegui terminar um livro desde que começou a distopia. E não por acaso foi um livro distópico que começa “e no dia seguinte ninguém morreu.” Nesses dias em que no dia seguinte a gente contabiliza quem morreu. E se preocupa em saber se alguém dos números era nosso conhecido. Tenho a impressão que nessas circunstâncias todos se tornam conhecidos. Todos os números doem como se fossem o nosso amigo. Afinal habitamos o mesmo mundo. Embora não estejamos sujeitos as mesmas intempéries. 

Vi as pessoas em isolamento social fazendo listas de livros, filmes e séries para assistir. Eu não fiz nada disso, meus dias seguem parecidos. Sou meio isolada. Gosto assim. Sigo trabalhando nos mesmos horários. Eu só queria conseguir ler um livro. 

Ano passado foi um ano  tão ruim, e não consegui ler muita coisa. E agora está tão ruim que eu nem lembro porque o ano passado foi tão ruim. Eu achei que era por isso, porque estava ruim, que eu não conseguia me concentrar. Ou porque já lia o dia inteiro a vida inteira, pesquisadora que sou. Descobri que era caso de idade. Resolvi colocando mais um foco nos óculos. E entrei num ritmo bonito de leitura. Estava satisfeita, leitora que sou desde criancinha. 

Mas aí veio a distopia. E eu não conseguia mais ler. E não porque tem que ficar isolada em casa. Para mim é mais fácil que a maioria. Eu tenho meu marido e muitos bichos. Eu posso trabalhar em casa. Eu tenho um teto para me isolar. Eu tenho água todos os dias para lavar as mãos. Mas não há possibilidade de no outro dia não haver números. E os que podiam fazer algo para termos menos números estão presos em narrativas particulares. E as pessoas que podem, não deixam de sair de casa, mesmo podendo virar números. Mesmo podendo  transformar os outros em números. E tem o vizinho aqui do meu lado levando vida normal. Vida normal, na distopia. 

Mas hoje eu consegui terminar um livro, e nele disse Saramago “a morte não dorme.”

A não ser que a gente tenha que sair para trabalhar, não tem nada que não se possa deixar para depois que tudo passar. 

Cuidemo-nos.🌹



Luciana deseja que todos fiquemos bem e que sejamos responsáveis não só por nossas próprias narrativas.

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