“Eu tinha que esperar mais de 20 dias dentro do barco. Havia meses em que eu ansiava por chegar ao porto e desfrutar da primavera em terra. Houve uma epidemia. No Porto Abril nos proibiram de descer. Os primeiros dias foram duros. Me sentia como vocês. Logo comecei a confrontar aquelas imposições utilizando a lógica. Sabia que depois de 21 dias deste comportamento se cria um hábito, e em vez de me lamentar e criar hábitos desastrosos, comecei a comportar-me de maneira diferente de todos os demais. (...)Em vez de pensar em tudo que não podia fazer, pensava no que faria uma vez chegado à terra firme. Visualizava as cenas de cada dia, as vivia intensamente e gozava da espera. Tudo o que podemos obter em seguida não é interessante. Nunca. A espera serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso. (...)Naquele ano me privaram da primavera, e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.”(*)
Sou uma pessoa conhecida pela minha falta de memória com datas. Confundo-me com momentos; nunca sei ao certo onde e quando ocorreram. Mas guardo com cuidado, e em ricos detalhes, todos os sentimentos que tais momentos me proporcionaram.
O dia 18 de março de 2020 certamente será diferente. Estou certa de que guardarei esta data na memória como o dia em que perdi minha liberdade. Mais precisamente como o dia em que renunciei à minha liberdade, pensando em todos aqueles que não a possuem sequer para, momentaneamente, dela também renunciarem.
Somos gregários. E eu me sinto ainda mais gregária que muitos. Também sou conhecida por viver em festa, cercada de pessoas de todas as raças, credos e cores, conversas acaloradas ao redor da mesa, ao tilintar de copos que se esvaziam rapidamente, gargalhadas escandalosas e obscenas, braços dados e abraços apertados no meio da rua. Sofro. Já não sei se serei lembrada assim. Ou talvez o seja, porém com data para acabar: 18 de março de 2020. Passados nove meses e dez dias, confesso que nutro meu espírito, algumas vezes de decepção, outras de esperança. Não sabemos quando isso irá acabar, nem se irá acabar.
Em 18 de março de 2020 eu ainda tinha esperanças de comemorar meu aniversário, pouco mais de dois meses depois, com festa. Um grande encontro de amigos. Eu ainda não estava abatida, consegui comemorar remotamente e, confesso, naquele dia pareceu-me extremamente divertido. Mas não consigo mais viver um momento tão crítico alegremente. Não consigo mais deixar de sentir repulsa por quem nega a existência do perigo e relaxa com a vida alheia. São mais de 190 mil famílias chorando no país. Sem contar aqueles que choram em solidariedade, mesmo que (talvez, ainda) não tenham perdido um ente querido.
Tenho a impressão de que nem a proximidade da morte foi capaz de fazer com que grande parte das pessoas refletisse a respeito do que realmente importa. Incontáveis pessoas ao meu redor não foram capazes de renunciar ao direito de ir e vir em prol da vida, em prol do outro. As mesmas pessoas que enchem igrejas e templos, que pregam amor ao próximo. Venho tentando oferecer a outra face, mas está cada vez mais difícil.
Do meu recolhimento, ouço o alvoroço de crianças brincando, gargalhadas de adultos e penso que nunca imaginaria que sons outrora tão alegres e convidativos um dia me causariam um misto de vergonha, horror, náusea, decepção. E saudades, muitas saudades da época em que a preocupação com o outro me parecia mais etérea (embora não devesse jamais).
Às vezes penso que morri um pouco. Às vezes penso que há muita vida à minha volta e à minha frente. Às vezes penso que meus sonhos estão cada vez mais distantes da concretude. Outras, sinto que é apenas uma questão de tempo até eu voltar a alçar vôos cada vez mais distantes.
O desespero eu aguento. O que me apavora mais é a esperança. Não sei ao certo quem disse isto, dizem que o Millôr Fernandes. É exatamente o que sinto neste momento. Uma esperança apavorante. Porque em 2020 eu sinto que morri um pouco, mas em 2021 eu não vou morrer de novo.
Laeticia tem esperanças em um futuro melhor. Quando este dia chegar, vai botar seu bloco na rua.
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(*) Gabriel García Marques em O Amor nos Tempos do Cólera.
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