quarta-feira, 24 de junho de 2009

Quer mesmo?

Longe, em tempo e não distância, ela lembrava do quanto o querer trouxera-lhe coisas.

Há décadas, quando o amor fora seu principal passatempo, de fato teve tudo o que quis, menos aprender a amar, que era o que mais lhe faria bem no futuro. Aprender a amar só chegou em um longo e despercebido, disfarçado, intervalo de querer.

Depois, em paz com o amor, o trabalho passou a estar no holofote em sua vida. E o querer voltou a andar a seu lado, como o irmão mal do gênio da lâmpada a realizar seus desejos. Aprendeu o que quis, trabalhou onde e como quis, mas nem sempre quando quis, pois o irmão mal do gênio era meio preguiçoso.

Tarde demais e duramente, sob o escárnio do querer, descobriu que ter o que se quer não é garantia de viver em paz. Isso porque o homem é incapaz de querer algo por completo.

Quer alguém legal e inteligente para amar e encontra, mas não lembra de querer também que este alguém tenha os mesmos objetivos de vida. Daí se ferra.

Quer trabalhar com algo envolvente, estimulante, desafiador e recompensador. Consegue, mas não lembra de querer também que o trabalho seja num lugar legal, com gente legal, em uma empresa preocupada com sua qualidade de vida pois quanto melhor ela for mais a empresa vai render. Não lembra de querer poder escolher a hora que vai trabalhar e ter um pouco de liberdade sem ter que implorar ou ofender ninguém. Não lembra de querer estar satisfeita com o trabalho e ainda ter vida além dele. Daí se ferra.

Quer um emprego mais legal e consegue. Mas esquece de querer algo que ainda não sabe o que é, mas que logo, logo vai se arrepender amargamente de ter esquecido. Daí se ferra. E ainda por cima, descobre que, pelo jeito, querer atrasado não conta.

Não quis um amor concreto, não quis filhos leves e lindos, não quis andar descalça pelo dia, não quis dar-se o tempo de viver, não quis a paz. E foi só assim que tudo isso teve, por completo, sem a falta dos detalhes de quem esqueceu de querer.

Hoje, longe de salas fechadas, ares gelados, cartões de ponto e gravatas, ela observa o manjericão da janela, prestes a florescer de novo. Trocou a nuvem de interesses por uma nuvem de aromas, o cinza do concreto pelo colorido dos temperos, o som de fábricas e máquinas e caminhões pela conversa leve sobre a vida com a irmã, sua sócia, alternada com o silêncio confortável de quem tem intimidade e com as horas de conversa consigo mesma, no caderno de papel reciclado colorido, à mão livre, longe de teclados e do branco de monitores, escrevendo receitas de bolos ou de sonhos.

Hoje, vestida de avental e mais bela do que antes, quando vestida de guerra, com uma colher de pau numa mão e um livro na outra, sorri ao ver o tanto do querer da filha, mas cala, pois sabe que é ela própria que terá que abandoná-lo, como já conseguiu antes fazer com o Ico, o bico, com o tata, o cobertor e com o péssimo hábito de roer as unhas, quando ficou mocinha. Ela sabe que a filha vai chegar lá, talvez ainda mais cedo que ela.

Hoje, prefere ter o querer como um amigo não muito próximo, em intensidade e não distância, que aparece em casa sem avisar e a faz sorrir mas vai logo embora, deixando-a em paz.

Gisele Lins escreve aqui às quartas-feiras.

2 comentários:

Lila disse...

Onde e que tu comeca e a Juju acaba???
Me confundiu!

Gisele Lins disse...

Hahahaha! Eu também achei confuso depois que li. Não é a Juju, sou eu mesma no passado, presente e futuro, hahaha!
Muitas saudades neguinha!
Beijocas!

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