Os tempos têm sido difíceis. O país parece caminhar para uma involução contra todos os exemplos vindos dos países mais desenvolvidos. Mas nada pior dos que os últimos tempos, e aí estou falando de últimas semanas mesmo.
Temos como homem que aprova o que se vota para se tornar lei um ser corrupto até a raiz dos poucos cabelos, imoral, mentiroso, misógino, chantageador, falso religioso...poderia escrever adjetivos o dia todo aqui. E outros imorais correndo para aprovar pautas absurdas antes que esse ser caia. E como demora a cair, não é mesmo? E a pior de todas é um PL da autoria do próprio ser, que é mais um abuso, entre tantos que sofremos no decorrer da vida, contra todas as mulheres. Não existe bancada feminina? Qual o motivo desse torpor todo?
Falando em abuso, esses últimos dias ainda nos proporcionaram cortes na alma quando pudemos ler os depoimentos na campanha #primeiroassédio. Mulheres que se desnudaram até a alma para dividir o primeiro assédio do qual lembraram e que fizeram com que todas nós pudéssemos resgatar os assédios/abusos que sofremos durante a vida. Aliás, uma hashtag não é para fazer o resumo no final de uma postagem, mas é um link onde estão compiladas todas as postagens sobre aquele conteúdo – então clica lá na #primeiroassédio e você nunca mais vai ser o mesmo.
Todos os depoimentos me fizeram lembrar as vezes que queria sair com uma roupa e resolvi sucumbir ao medo e sair com algo mais discreto;
fizeram lembrar do dia em que – com 12 ou 13 anos (a idade da Valentina – nojo) um desconhecido num ônibus intermunicipal disse que me daria um beijo ali mesmo, que a minha boca era linda, entre outras coisas que fiz questão de esquecer, e terminei a viagem na cabine do motorista, onde me senti segura – me sentindo culpada por ter conversado com um desconhecido;
fizeram lembrar quando com 14 anos um cara enfiou a mão dentro da minha bunda, quando eu entrava no prédio que eu morava – mas mais pareceu que enfiou na minha alma – embora ele tenha sentido o tamanco que eu usava fincado em seus costas por um reflexo meu, fiquei me sentindo imunda por muitos dias e achando que a culpa era minha, afinal porque uma bunda tão grande?
fizeram lembrar da noite em que o cara que eu era apaixonada e nunca tinha tido nada (aí já na faculdade) – me levou para casa após um baile de formatura (e eu tinha certeza que ele não tinha nenhum interesse por mim) – de ele ter me agarrado a ponto de arrebentar meu vestido e eu só ter escapado por ter conseguido abrir o portão e entrar correndo no meu prédio. E fiquei por muito tempo sentindo vergonha por ter sido apaixonada por uma cara desses – quem vê cara não vê tara – e culpada por ter me aproximado dele. Só o vi mais uma vez um tempo depois e senti um frio tão grande na espinha e muita náusea. Claro que nunca contei isso para ninguém, afinal acreditava que a culpa era minha;
fizeram lembrar de quando tive que mudar de um ap que adorava por ter um vizinho stalker – antes mesmo desse termo existir – por ele me esperar todos os dias na sacada e descer as escadas “coincidentemente” na hora que eu estava subindo – por ouvir as batidas na porta para pedir algo e prender a respiração para ele não perceber que eu estava ali, mesmo sabendo que ele sabia que eu estava;
fizeram lembrar do professor que passou um seminário inteiro olhando para a minha bunda e que parou atrás de mim no caixa eletrônico, passando a mão no meu braço para me dizer bom dia...
fizeram lembrar de todas as vezes que deixei de passar num lugar escuro e caminhei muito mais por medo; de quando tive que atravessar a rua enquanto passeava com meu cachorro; de todos os “delícia”, “gostosa”, “tesão”, “te comia todinha” e etcéteras.
E hoje me abstenho de falar dos abusos morais sofridos profissionalmente.
Aí as pessoas (ah, as pessoas!) protestaram contra o tema de redação do ENEM, o qual foi dito como feminista não sendo, e esquerdista, como se não fosse um tema de interesse geral. Como a persistência da violência contra a mulher poderia não ser um tema de extrema relevância? Sobretudo quando não há nenhum viés de mudança, mas sim de piora, com o rumo que os políticos têm dado para as nossas vidas?
Ah o ENEM, ainda nos proporcionou ler as interpretações sobre a frase legendária de Beauvoir. Tantas gritaram que nasceram mulher sim, pois nasceram com uma vagina! Não é à toa que muita gente não passa em concursos por não saber interpretar textos. Aliás, quando alguém chega para você e diz: “que bela mulher você se tornou” – você pensa logo que não, você não se tornou mulher, você já nasceu com uma vagina – ou você pensa em toda a sua trajetória de vida?
Os depoimentos do #primeiroassédio me cortaram a alma e me fizeram sentir sortuda pela violência sofrida como mulher no decorrer da minha vida tenham só marcado minha alma, vendo tantas outras que sofreram violência física e tiveram seus corpos e suas almas dilaceradas. As atitudes perante a redação do ENEM fizeram temer mais ainda por tantas mulheres abusadas, violentadas, machucadas – muitas vezes por seus próprios companheiros. As pedras atiradas no feminismo, mesmo quando não se trata dele – por homens e mulheres – me fazem perceber que não são só os homens que não fazem ideia do que é ser mulher nesse mundo, muitas mulheres também não. E que culpa é essa que a gente tanto sente?
E não, não é uma simples vagina que nos torna mulheres.
Luciana normalmente escreve as quarta e está muito contente com a mobilização feminina contra o PL5069 - está apenas começando!