quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Curvas de Memória

Ontem lembrei que tenho uma irmã mais nova (poderia dizer meio-irmã, mas essa história de meio-irmão pra mim não existe, irmão é por inteiro). Quando meu pai faleceu, ela ainda era uma criança, e por culpa de motivos toscos de adultos nunca mais tive notícias dela. Não sei se continua bonita, se foi mimada como eu, se estudou direitinho, o que sonhava ser quando crescer e o que foi se tornando aos pouquinhos, onde mora hoje, se já tenho sobrinhos. Onde estará?

Ontem lembrei da minha primeira amiga. Ela morava próximo à primeira casa em que eu lembro ter morado. Tenho uma memória incrível da minha tenra infância. Nesta casa foi onde ganhei a coleção do Monteiro Lobato, rolei da escada porque pisei na ponta da toalha de touquinha da Mônica, descobri que adoro comer feijão com farinha de colher em dias de chuva e como descolar selos de envelopes deixando-os de molho na água em um tabuleiro. Foi onde comecei a questionar o mundo, onde tive a minha primeira discussão (em que minha irmã mais velha teimava em dizer que era óbvio que os baby alfaces ficavam sempre por baixo no prato e eu achava que era óbvio que eles ficassem por cima), e onde filosofei durante horas com essa minha primeira amiga sobre o quanto a música "A Casa" não fazia o menor sentido, pois como podia uma casa sem chão? Eu tinha três anos. Fazem quase vinte e setes que minha amiga morreu atropelada por uma charrete naquele lugar. Eu sinto falta do silêncio e da timidez cúmplice daquela menina calada. Onde estará?

Ontem lembrei de uma menina que catava patas de grilos com chicletes usados, enrolava tudo numa bola e cantava uma música, inventada com sons grotescos, jogando esta meleca para cima e piamente acreditando que podia fazer chover, só porque queria muito tomar banho de chuva. Algumas vezes conseguiu. A mesma menina criava girinos em uma bacia na sacada do apartamento. Um dia eles sumiam. Ela tentava de novo, sempre querendo saber se arrancasse a cauda do girino ela teria um sapinho manco, que não conseguiria fugir. Nunca teve a coragem de testar.

Ontem lembrei de uma moça, meiga e ingênua, que escolhia palavras para não magoar os outros e tinha tempo para ouvir as pessoas. Ela nem sempre sabia muito bem o que queria, além de salvar o mundo, mas tinha a certeza de que conseguiria tudo o que quisesse e com isso vivia tranqüila. Quase sempre conseguiu.

Ontem lembrei de uma mulher, que inventou uma estratégia para resolver ranços com as pessoas. Cada vez que a lembrança, cheiro, imagem de tal pessoa, ou da situação ruim vivida, viesse à memória a mulher se imaginava entregando uma rosa branca para a pessoa, virando as costas e seguindo seu caminho. Desde então, caminhões de flores a mulher entregou em pensamentos. Quase sempre conseguiu resolver o ranço.

Onde estão menina, moça e mulher?

Tem dias em que se está triste porque se está triste, se está com saudade porque se está com saudade, se está perdido porque se está perdido. Ponto. Tem outros dias em que exatamente as mesmas memórias acordam inexplicavelmente felizes. Sendo assim, segue fazendo, segue tentando.

Gisele Lins escreve aqui às quartas-feiras.

9 comentários:

Anônimo disse...

Lindas lembranças. Às vezes penso, o que seria de nós sem a memória, pra nos confortar em tantos momentos difíceis ou devolver a cor da nossa vida nos períodos chatos...
Aline Bahiense

Anônimo disse...

Não tenho nem palavras para falar o que esse texto representou pra mim...

Muito bom.. As vezes faz bem lembrar das coisas, mesmo que elas sejam tristes!


Júlia

Renata disse...

Gi, adorei o texto..embora achando um pouco triste...
Beijo!

Mariana disse...

nossa! q delicia de texto! beijo!

Anônimo disse...

Lindo o texto !
Principalmente esse trecho:

"Ela nem sempre sabia muito bem o que queria, além de salvar o mundo, mas tinha a certeza de que conseguiria tudo o que quisesse e com isso vivia tranqüila. Quase sempre conseguiu."

Não achei triste, apenas mostrou que pessoas otimistas tbm tem seus momentos de melancolia, mas superam isso. Amei !!!!

Professora Vanessa disse...

Gisele,
achei o seu texto sensível, tocante...
Realmente me emocionou.
Um grande abraço,
Vanessa.

Anônimo disse...

Gi!
Fiquei fusando na internet ate encontrar o blog de vcs.
Adoooorei!
bjs saudosos
Janaina

Lila disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lila disse...

Ontem lembrei de uma menina que passeava com seu cachorro todas as tardes em frente a minha casa. Ela me parecia tao sozinha e senti pena dela.
Mal eu sabia que dentro daquele ser existia um milhao de pessoas e que a solidao nao era algo que a abalava.
Tinhamos 8 anos.
Eu a convidei pra brincar e para ser minha amiga.
Mal eu sabia que naquele momento eu estava tracando meu futuro. Permitindo que participasse de minhas brincadeiras ela mudou a minha vida, tornando-a mais rica e mais feliz.
Te amo!

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