Fico chateada quando planejo meu dia e por alguma eventualidade não sai do jeito que eu queria. Essa chateação costuma durar assim, uns cinco minutos. Pouco tempo, é verdade, mas quarta feira eu realmente queria ter feito o que tinha planejado e teria ficado muito triste se não tivesse acontecido uma coisa meio mágica. Aliás, muito mágica.
Era aniversário da minha mãe e tudo levava a crer que meus planos de aparecer lá de surpresa com um bolo de chocolate cheio de velinhas iriam por água abaixo. Enfim, eu estava destinada a movimentar o PIB do país naquele feriado.
Resignada, encarei o trabalho e estava absorta tentando tirar água de pedra numa daquelas defesas indenfensáveis com que todo advogado, mais dia, menos dia, se depara, quando ouvi passos se aproximando da minha sala e vozes, que, apontando em minha direção, disseram: “esta é Laeticia, neta de Tio Álvaro”.
Álvaro. Álvaro. Álvaro. O sorriso surgiu espontâneo no meu rosto. Já de pé, antes sequer de ser apresentada àquele simpático velhinho, que já devia ter bem seus 70 e tantos anos, atirei minha pergunta à queima roupa: “o senhor conheceu meu avô?” E a resposta que recebi despertou em mim saudades que naquele exato momento estavam um pouco adormecidas: “conheci Álvaro sim. Grande violonista. Eu era menino e ele era o único adulto que conversava conosco de igual pra igual. Naquela época, adultos não conversavam com crianças, mas ele conversava.”
Como que por encanto, fui tirada da melancolia de estar trabalhando num feriado e meu dia adquiriu novas cores. Eu sempre soube que meu avô era uma pessoa especial. O avô da gente é sempre especial. Mas ouvir de um velhinho suas lembranças de menino e ver que ele também achava meu avô especial me emocionou profundamente. A saudade tomou conta de mim e eu passei a senti-la intensamente, com meus seis sentidos. Como estou sentindo de novo agora.
Eu olhava aquele velhinho contando que quando ouvia “táuba, de tiro ao álvaro” ele sempre se lembrava do meu avô, e sentia saudade com os olhos. Cheguei a ver Seu Álvaro sentado de perna cruzada na poltrona ao lado, sorrindo pra mim. De repente, eu estava ouvindo o som de um bandolim e aos poucos identifiquei a música. Não me lembrei do nome, se é que algum dia eu soube. Mas aquela música tinha gosto de infância, força de pacata-tá-tá-tá, cheiro de catar arroz com pinça na mesa da copa, cara de bala de amendoim com cobertura de chocolate guardada no cofre, textura de bolo solado e de rapa de lata de leite condensado, barulho de doce de leite, gosto de “tomara eu ver”, cheiro de coçar “cacunda”, toque de prato que “Maria não sabe lavar”, cara de comida eternamente sem sal, nojo de colher “babujada”, uma sensação forte e eterna de estar sendo carregada no colo. Meu avô estava ali do meu lado, como está aqui do meu lado agora. Talvez eu não possa mesmo vê-lo, tocá-lo, cheirar seu cabelo, ouvir sua risada, tomar sorvete com ele. Mas eu posso sentir sua presença do mesmo jeito que sentia quando era criança e ele estava mesmo lá.
O filme da minha vida passou inteiro pela minha cabeça naqueles cinco minutos que estive com aquele velhinho. Lembrei do dia que fomos à praça da matriz em Diamantina e vovô não deixou a gente (eu e Cecília, a dupla inseparável) ver que ele tava comprando bonecas “meu bebê” pra gente ganhar de Natal. Lembrei das inúmeras baratas das quais vovô me protegeu e das várias vezes que ainda me ajudou a fugir da “pedagogia” de vovó que queria matar meu medo me obrigando a enfrentar aqueles monstros asquerosos, as baratas. Lembrei do dia que cheguei em casa quase de manhã, vestida de mulher-gato, meio de fogo e encontrei meu avô tomando café com leite, me olhando, numa mistura de surpresa e incredulidade. Lembrei que neste mesmo dia, quando me levantei com aquela sensação híbrida de ser meio gente, meio merda – tinha bebido horrores -, ouvi do banheiro: “Calú, vc não vai conseguir segurar Laeticia. Ela é igual um rapaz: sai a hora que quer, chega a hora que quer e só faz o que quer.” Ele estava achando graça.
Confesso que esta última lembrança conseguiu segurar as lágrimas que inevitavelmente brotaram enquanto eu escrevia, mas ainda tem uma lembrança marcante que me fará ir às lágrimas novamente. Vovô, já bem velhinho, na cadeira de rodas, falando muito pouco, mais frágil do que o homem que me protegeu a vida toda, emocionado ao ver seu nome junto com o de mamãe no meu convite de formatura. Ele gastou quase uma semana pra ler o convite todo. Quando vi aqueles olhos que cuidavam de mim desde sempre, eu tive certeza de que quando ele me olhava, ele sentia gosto de relógio batendo, ouvia barulho de viagem pra praia, falava jogo de buraco, cheirava pescaria, sentia meu peso pulando no colo dele e me abraçava forte e ternamente com os olhos mesmo quando fisicamente eu também não estava lá.
Laeticia é taurina com ascendente em leão; passional até a raiz dos cabelos, se atira à vida e aos sentimentos intensamente, sem medo de quebrar a cara. Já quebrou muitas vezes, colou e continua se atirando. Desde quarta-feira vem se deliciando na saudade, sentida em seus seis sentidos. Continuará despejando sua paixão pela vida neste blog às terças-feiras.
11 comentários:
Oi Le,
Que bom que achei um computador cque me deixa fazer comentario. Eu senti todos os cheiros e gostos lendo seu post. Nao tenho mais muito o que dizer, so que esta emocionante demais.
É, Seu Álvaro deve mesmo estar andando por aqui. Todos essas impressões devem ser mais que a imaginação. Deu dor no peito, mas a certeza de que ele viveu e não só passou pela vida é confortante.
E vou tentando seguir seus exemplos...
Não conheci seu avô, mas vc conseguiu me emocionar!Já ouvi a Sisa falando dele com muito amor, então tenho certeza q certamente ele deve estar olhando por vcs, sempre!bjs
Nossa, como senti saudades de pessoas, fatos e momentos que há muito não me lembrava. Seu texto foi uma viagem no tempo para mim!
Muito lindo!
Beijos.
Oi Laeticia!!
Lindo o seu texto!!! Eu também me emocionei e foi inevitável pensar na minha infância... meu coração apertou ao pensar na minha vozinha, que tb sepre foi forte e se encontra tõ frágil hoje e dia...
Beijinhos!!!
Fafá
Que saudade! Delícia... Mesmo não tendo aproveitado tanto quanto vcs do meu vô, como é bom relembrar os bons momentos que passamos. Intensos e repletos de gostos, cheiros, sons...
Laeticia,
simplesmente emocionante...
Também lembrei de momentos bons! Mágicos!
Um abraço,
Vanessa.
Nossa, não estou conseguindo entrar todos os dias pra acompanhar o blog, mas fico súper ansiosa, porque estou amando todos os textos!!!!
Esse em especial me emocionou muito, sempre tive umas ligação muito forte com meu avô e infelizmente não consegui realizar o sonho de dançar valsa com ele no meu baile de formatura, era o que ele mais falava enquanto eu estudava, só que não deu tempo...
Parabéns Leatícia, quando crescer quero escrever bem como vc...rs
Puxa, Laetícia, achei muito lindo o texto, me emocionei lendo suas lembranças e sentindo o cheiro das minhas. É bem bom sentir saudades do coisas boas!
Um abraço!
Assim não dá!
Eu nem conheci o meu avô e quase chorei de saudades do seu!
Isso sim é escrever intensamente!
bjos
Lê, a gente chora quando lê, também vi vovô fazendo cola de farinha de mandioca, "grude" e me mostrando as formigas fazendo aquele caminho interminável no chão...
Adorei...... beijos
Postar um comentário