Com seis anos “marido-emprego-filho-cachorro” era tudo o que eu queria aos vinte. Desde que o emprego fosse de “patinadora”, naquela época eu achava que qualquer coisa que preenchesse os outros três itens de série me faria feliz. Veio então a fase de querer ser astronauta, que durou bastante tempo e foi bem mais interessante. No intervalo entre astronauta e farmacêutica, segui a linha “mística-xamã-grunge-holística”, que até hoje define muito do que sou (ou do que restou aqui dentro daquela adolescente maluca).
Aos vinte e um, porém, foi inevitável lembrar do dia que minha mãe certamente não lembrava. Ano 2000. Dos itens básicos, não podia dizer que não tinha nenhum deles, mas também não podia dizer que tinha. Emprego? Faxineira e babá, muito obrigada. Marido? Tá bom, namorido. Filhos e cachorro? Dá pra trocar por duas roseiras?
Porém, na beira do Tamisa eu ri, e bem no fundo, pensei no quanto foi bom não ter levado a sério a resposta de minha mãe.
Aos 30 (28 é quase 30, já respondi que tenho 30 por aí...), finalmente... Nada mudou quanto ao não-preenchimento dos itens de série. Porém, quanta diferença!
Tenho que ser justa. Emprego: confere. Namorido (e não marido): confere.
De resto, valha-me Deus!
Fui e vim por aí a valer. Buscando o que todo mundo busca e não sabe bem o que é. E foi do menos provável, do mais inesperado, do desavisado, do susto, do grito que descobri que me alimento.
Não sou patinadora, nem astronauta, mas vivo de algo que nunca pensei em viver e que realmente me faz feliz. Urbanóide Neo-caipira de Londres para um fim de mundo (com um pit-stop de alguns anos na capital gaúcha, minha origem, minhas entranhas), acordo todos os dias e vejo uma das paisagens mais lindas que já vi. E ela segue me emocionando. Incômodo é o galo do vizinho (sim, um galo, e não um gato), que insiste em emendar os 800 cachorros do bairro depois que eles cansam de latir, além dos raios dos Ui-rru-rrís (que chamam de bem-te-vis por aí, não sei bem por que).
O eterno barulho do silêncio que me rodeia trás surpresas agradáveis. O piá do vizinho, por exemplo, que deve ter menos de duas primaveras, mas fala um javanês esplêndido e divertidíssimo em tempo integral (com os pais ou com a parede). Ou pensamentos, que sempre estiveram por aí, reboleando, e hoje gritam nos meus ouvidos.
Eu achei que vinha para um emprego. Emprego? A vida tem sido muito mais que isso camarada...
Sigo apaixonada, como em todas as vezes que conheci alguém que me fez pensar (e depois desistir) “é, de fato, serve pra marido”. Apaixonada pelas pequenas e pelas grandes coisas. Chuva de estrela cadente, vinho no terraço, céu claro, vento e pele com a mesma temperatura (delícia). Casa, ninho, meu canto. Dormir de conchinha e estar confortável com alguém, mesmo no silêncio. Apaixonada, sempre, e principalmente, pelas pessoas. Não todas, que elas são muitas. Porém, sim, as inesperadas, poucas e que se justificam sem palavras. Viagens, cachaçadas, shows, baladas, sim também, mas isto com qualquer das muitas. Agora, meu camarada, cochichos, risadas, jantares, confissões, segredos, brigas, mágoas, reconciliações, olhares furtados que dizem muito, um abraço, encontros, colo, choro, andar de camisola ou de calcinha e se sentir em casa em qualquer lugar do mundo... Só com eles, os eleitos, os amados, que são poucos, mas enchem a minha vida, e certamente, chegaram e sempre chegarão inesperados.
Marido? A vida tem sido mais que isso camarada...
Filhos? Bom, quanto a estes permanece o mesmo desejo de quando eu tinha seis anos, mas cheio de novos significados: os terei quando eles me quiserem (não que eu vá facilitando por enquanto) e vou seqüestrar para sempre algum que não foi quisto daqui a 14 anos.
Cachorro? Hoje prefiro vacas.
Pra ficar perfeito só falta abandonar meu passatempo muitas vezes preferido: reclamar (e me dar conta de que não há motivos). Porém, perfeição? A vida tem sido... Tá, tá bem.
E se, numa esquina destas, por este tempo de agora, esta mesma vida me puxar pela mão e disser:
- Era isso, minha bruxa!
Só tem uma coisa que me ocorreria responder:
- Valeu! Muito mais aos 30.
Gisele Lins é uma farmacêutica urbanóide neo-caipira, eternamente em conflito (qualquer conflito), que pensa e fala mais do que gosta, mas que também gosta mais do que fala e pensa, e escreve aqui aos sábados.