terça-feira, 4 de setembro de 2007

Cicatrizes

Eu andava muito nervosa, tensa, porque tinha começado num escritório que não era nada do que tinham me prometido e muito triste porque um grande amigo tinha morrido estupidamente havia menos de uma semana. Parecia que a vida ia me tirar tudo de bom que eu sempre tive a começar pelas pessoas que eu amava. Definitivamente, aquela não era a Laeticia sempre alegre, sorridente, certa de que gente é pra ser feliz e não pra morrer de fome que eu sempre fui.

E foi num dia assim, há pouco mais de um ano, que eu saí correndo de casa, atrasada, pra ir trabalhar no tal escritório. Nem dei um beijo de tchau pro Bola porque eu estava tão triste que achava que meu beijo ia ser amargo. De repente, não sei até hoje o que aconteceu, caí nas escadas. Eu sempre levei tombos homéricos do nada, me levantava, arrumava o cabelo e seguia em frente, literalmente. Mas aquele tombo foi diferente. Eu machuquei muito a minha perna esquerda, chegou a rasgar minha roupa. Doía muito. Permanecer naquela posição doía mais ainda. Mas eu não consegui reunir forças pra me levantar sozinha.

Não me lembro exatamente como aconteceu, mas sei que dei um grito e quase que instantaneamente o Bola estava do meu lado, enrolado na toalha, com uma coisa na mão. Ele achou que era ladrão – tinha pouco tempo que nosso vizinho tinha tido a casa arrombada – e correu do jeito que estava pra me socorrer. Encontrou uma mulher caída nas escadas, com a calça rasgada, perna sangrando, uma perna pra frente e outra ainda dobrada pra trás, imóvel, mas tremendo e soluçando, desfigurada de tanto chorar. Aquele choro não era só pela dor da queda, ele sabia. Ele me ajudou a me levantar, me carregou no colo, levou pra casa e ficou lá cuidando de mim.

Desse tombo ficaram algumas cicatrizes, uma delas de um palmo de comprimento e quase um centímetro de largura. Bem grandinha. Passado o susto – só o susto, a tristeza demorou muito mais pra ir embora –, como sempre fui muito vaidosa, comecei a pensar uma forma de tratar aquele machucado sem que ficasse uma cicatriz na minha perna, mas não teve jeito. Ela está lá e vai ficar lá pra sempre.

Foi essa cicatriz que me fez começar a pensar em todas as minhas outras cicatrizes. Tenho várias, pois fui um anjo de criança! Aí me lembrei de uma cicatriz que ganhei quando estava correndo nas escadas do prédio que eu morava, com o carrinho do vizinho, e ele puxou minha perna. Outra, grande, nas costas, foi na escola. Um colega que nem me lembro o nome puxou a cadeira e eu caí. O prego não estava nos planos dele, mas devia estar destinado às minhas costas! Essa sumiu. Uma no peito do pé foi durante uma viagem quando morei na Tailândia. Todo dia ela me lembra que aquilo não foi um sonho. No umbigo, a cicatriz de um piercing que eu desisti de usar depois que a idade – e a gula – me impingiram uns quilos a mais. Na virilha, duas bem pequenininhas; adquiri quando, aos 22 anos, fiz uma lipo que não precisava. Hoje, que preciso, não tenho coragem de arriscar a vida que tenho por uma barriga lisinha. Nas mãos, algumas cicatrizes pequenas adquiridas ao longo de vários carnavais tocando surdo por horas a fio, durante dias. No punho, a cicatriz de uma dentada de cachorro. Cachorra, aliás, que estava quase parindo e eu, criança, caí na besteira de querer fazer cafuné na barriga dela. Nos braços, marcas das vacinas, cuidados de mãe. No rosto, algumas micro cicatrizes, lembranças de uma adolescência feliz e com poucas espinhas que um dia um dermatologista louco quis tirar à base de ácido.

Corri para o banheiro, acendi a luz e colei o rosto no espelho à procura de outras cicatrizes, comumente chamadas de rugas. Diante de mim mesma, constatei o óbvio: ainda que eu não tenha rugas – que certamente virão – meu rosto possui outras marcas além das cicatrizes de espinhas. As maiores descem da lateral do nariz até quase o queixo e parecem gritar minha alegria quando sorrio. Constatei que, mesmo ainda não possuindo marcas mais profundas, meu rosto traz cicatrizes de tudo que vivi nestes 30 anos. E cicatrizes não necessariamente são marcas de sofrimento. No meu caso, todas as minhas cicatrizes adquiri vivenciando coisas que me fizeram o que eu sou.

E olhando profundamente através das janelas da alma, constatei que, embora minhas cicatrizes aparentes sejam muito importantes, aquelas que guardo dentro de mim e que nem eu mesma posso ver, mas somente sentir, são as que verdadeiramente forjaram o meu caráter, a minha personalidade e o meu jeito de viver e encarar a vida. Mas sobre estas eu não vou falar agora, porque todas as cicatrizes têm história, mas as cicatrizes da alma e do coração merecem que se conte a história todinha de cada uma delas, uma de cada vez.


Laeticia foi uma criança espivetada, atrevida, faladeira, que adorava subir em árvores, andar de pé no chão, pisar a terra de pés descalços, rir da cara dos outros e infernizar a vida alheia. Hoje ela continua sendo esta mesma criança, orgulhosa de suas cicatrizes e que lê Saramago.

6 comentários:

Unknown disse...

Acho que não consigo tecer um comentário a altura do seu texto Lê.
Magnífico seria uma boa palavra.

Pensei em cada uma das minhas cicatrizes (principalmente as que feriram meu espírito), e admito que muitas eu gostaria que não estivessem mais lá.
Sei que são necessárias. Mas queria que sumissem de uma vez por todas.

Beijo

Paula disse...

Realmente, Laeticia, cicatrizes todos temos, tanto físicas quanto emocionais. Como são inevitáveis, o melhor é encará-las como parte do processo de desenvolvimento e como certificado de que a vida foi vivida intensamente!

Anônimo disse...

Laeticia, fico encantada com seus textos, são súper bem escritos e sempre nos fazem parar pra pensar na vida.
Parabéns, sou sua leitora assídua!!!!

Sisa disse...

Oi Lê,
como eu lembro desses dias... Só posso dizer que ainda bem que passaram, e ainda bem que deixaram marcas que fizeram você crescer e aprender.
Beijinhos,
Ci

Angel disse...

Me emociono com textos como o seu. É tão bom sabermos que temos histórias pra contar, boas e más, o importante é que fazem parte de nós...
Bjos
Angel

Anônimo disse...

Parabéns, mais uma vez!! Texto maravilhoso!!
Também me dei conta das minhas cicatrizes e hoje não deixo de fazer nada com medo de ter mais uma, pois cada uma das que tenho só me fazem lembrar dos bons momentos que quero repetir (mesmo correndo o risco de ganhar outra) e dos ruins, onde aprendi meu limite, aprendi a ver quem é bom e quem não é, o que me faz mal e o que só me deixa roxa, mas me faz ter boas gargalhadas.
VIVA AS CICATRIZES!!

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