terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Será Que Eu Sou?

Caiu no vestibular de 1995. Eu tinha dezessete anos, não sabia onde estava meu nariz; que dirá o que eu iria fazer para o resto da vida. Covardia ter que fazer vestibular aos dezessete anos. Pelo menos o livro era o mesmo pras duas universidades, já que a matéria eu teria que me virar com força pra estudar, pois me inscrevera pra Direito e Veterinária depois de passar os últimos três anos numa escola técnica. Consegui a proeza de tirar mais de 90% no geral de um vestibular, mas menos de 30% em química!! Fui reprovada pra Direito. Pra Veterinária, fiquei em segundo excedente, mas aí meu intercâmbio já tinha saído e, mesmo que me chamassem, eu não sei se iria, porque o din din que meu estágio estava rendendo já estava direcionado pro intercâmbio.

Fato é que O Triste Fim de Policarpo Quaresma deixou marcas. Acabei levando comigo o livro pra Tailândia e o deixei por lá, após várias releituras, na biblioteca do AFS com uma dedicatória pro brasileiro que resolvesse se aventurar pelas páginas de Lima Barreto. De volta ao Brasil, reli a "estória" várias vezes e, quanto mais eu relia, mais eu achava a "estória" tinha muito de história.

Vários anos se passaram e nem me lembro mais quando foi a última vez que reli o romance. Mas a vida me tem feito me achar muito Policarpo Quaresma. Não que eu ache que devemos adotar o Tupi como idioma nacional, pelo contrário, acho que nossa língua merece mais respeito do que lhe tem sido destinado.

Durante minha vida profissional, tenho visto flagrantes aberrações. A Justiça, ouço dizer, que Deus a tenha. Ou ainda, melhor contar com a Justiça de Deus, porque com a dos homens não se pode contar. Sou obrigada a me calar diante de tais manifestações. Vejo ações alimentares se arrastando por anos a fio nos tribunais e agradeço aos céus por ter uma mãe capaz de cuidar da família sem que a pensão alimentícia que nos era, por Direito, devida, fizesse falta. Vejo mulheres e crianças espancadas, violentadas, sem uma efetiva proteção daqueles que tomaram o poder sob argumento de gerenciar as relações sociais. Minorias massacradas diariamente. Ou minorias defendidas como instrumento de defesa de interesses escusos. Teoria política na qual sinto que a única pessoa que acreditou fui eu. Contrato social de meia tigela...

A vida me levou por caminhos pelos quais nunca pensei trilhar. O Direito Penal sempre me fascinou e continua fascinando. Mais que meio de defesa de vagabundos, como a maioria pensa, o Direito Penal é instrumento de defesa de garantias individuais de nós, cidadãos. Só que estas garantias, que tanta falta fizeram nos idos da ditadura militar, têm de valer para todos, inclusive pro ladrão que entrou na nossa casa à noite, na surdina, e roubou algo adquirido com muito suor.

Enfim, mais tempo se passou, e acabei me vendo defendendo políticos. Sempre acreditei que no meio da canalha haveria alguém bem intencionado, haveria alguém decente, honesto. Embora meus amigos usassem termos pejorativos para indicar parte de minha clientela, os políticos, sempre ignorei. O papel de juiz não me cabe, não foi este o caminho que escolhi. Porém, com o passar do tempo, fui percebendo que no meio da canalha, há somente mais canalha. Pessoas que não vêem que tirar do dinheiro público um centavo que seja em benefício privado é tirar o pão da boca de quem tem fome. Não vêem ou não se importam de pagar seu luxo à custa da miséria alheia. Exagero meu? Sinceramente acho que não. Há quem não acredite, mas ainda há fome no Brasil. Não é necessário ir aos grotões do país, sequer ao Vale do Jequitinhonha para constatar o que digo. Vá a Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, eleita uma das melhores cidades pra se viver a algum tempo atrás. O povo lá é carente de tudo: atenção básica, educação, saúde, comida. E não me venham com conversa de que programa Fome Zero é bom por causa disso. Fome Zero é paliativo, é hipocrisia de quem dá comida como quem faz favor. A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. Lima Barreto e Titãs no mesmo texto?! Sim, porque quando se tira do público em benefício privado, não se tira simplesmente comida; rouba-se o futuro de gerações.

Começo a achar que estou enlouquecendo ou o estão todos em minha volta. Será que só eu não acho normal pagar e receber propina? Será que só eu vejo com indignação o tráfico descarado de influência nos altos escalões da sociedade? Será que só eu vejo que a clientela do Direito Penal (o preto, o pobre e a puta) só vem aumentando e que os ditadores do poder só enriquecem mais a cada dia à custa da miséria do povo? Mais uma vez eu digo: não me venham com esta de que estou discriminando os três P`s!! Ou alguém aí acredita que a cadeia, que o Direito Penal, efetivamente se destina a nós, classe média educada, nata da intelectualidade do país? Ou alguém aí deixou de tirar xerox na íntegra de um livro com medo de ser pego pelo Direito Penal?

Começo a achar que terei o mesmo triste fim que Policarpo Quaresma. Serei tida como louca e ainda bem (para mim, a louca) que não mais há os manicômios! Pobre da minha família que, ou conviverá com uma doida varrida, ou a abandonará, como costumam fazer os familiares de pacientes psiquiátricos depois que os manicômios foram hipócrita e simplesmente abolidos, sem que fossem dadas alternativas como hospitais dia, medicamento e orientação às famílias. Uma despesa grande a menos pro governo. E viva a luta antimanicomial!! O dinheiro do povo é uma farra mesmo!!

Penso tudo isso, mas olho novamente ao meu redor, depois deste desabafo, e acredito que o fim não precisa ser como o de Quaresma. Vejo muitas pessoas que verdadeiramente também se sentem Policarpo e isso me dá um alento. Quero crer que a epígrafe de O Triste Fim (*) não necessariamente exprime uma verdade. Estamos conscientes. Estamos lúcidos. Vamos fazer alguma coisa. Não basta dar o circo. A gente quer inteiro e não pela metade.

(*) “O grande inconveniente da vida real e que a torna insuportável para o homem superior é que, se para ela são transportados os princípios do ideal, as qualidades se tornam defeitos, tanto que muito freqüentemente aquele homem superior realiza e consegue bem menos do que aqueles movidos pelo egoísmo e pela rotina vulgar.”


Laeticia é uma advogada de 30 anos, ainda sonhadora, muito idealista, que vem pensando numa forma de permanecer na tribuna sem que sua essência se deteriore. Enquanto pensa, senta no próprio rabo e come chocolate suíço.


3 comentários:

Angel disse...

Lá vem ela, Maria Laeticia, com um belo texto, pra variar, realista, inflamado e com cara de esperança. Que bom!

Mesmo diante dessa lama toda que você vê todos os dias, não me canso de acreditar e ainda penso que vc tb não se cansa, que é possível ser feliz sendo honesto, praticanto a justiça dia a dia. Não me refiro à justiça escrita, me refiro à justiça que nós aprendemos como real e podemos praticá-la (educação, gentileza, honestidade, solidariedade).

Lute sempre pelos seus ideiais, seja advogando ou não. Quem tem ideiais contamina os outros. E é disso que precisamos, contágio de conhecimento, de objetivos de vida, de cultura.

Parabéns por citar uma obra literária, é mais uma forma de estimular a leitura.

Um beijo!

Paula disse...

Laeticia,

Muito bom seu texto!

Eu também tenho um pouco de Policarpo Quaresma: amo e acredito no meu país, acho que o patriotismo deveria ser mais exercido e tenho esperanças de que as coisas podem se encaixar. Sou uma idealista.

Mas quando olho para todas as palhaçadas a que assistimos de camarote, chega a me embrulhar o estômago, sabe? Quanta falta de cuidado, de caráter, de amor, de patriotismo. É cada um querendo guardar o seu. E, infelizmente, não só na esfera política, mas em todas as camadas da sociedade...
É o esperto que fura fila, que fica feliz da vida com o troco recebido a mais, que não reclama quando a conta vem com itens faltando...

Nessa horas eu penso: será que ainda dá? Minha esperança começa a perder forças...

Sisa disse...

Bom, já te falei pessoalmente que não vejo problema nenhum da pessoa ser idealista, se indignar com as coisas e comer chocolate suíço. Se esse chocolate suíço não foi roubado e nem conseguido por meios tortuosos, nada de errado, ainda mais quando ele chega na sua mão cheio de abraços, beijos, olhares, sorrisos e muito, muito amor.

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