Estava eu cá com toda minha mediocridade literária, tentando escrever um texto mais ou menos sobre como a nossa felicidade atrai inveja e energias ruins, como o mundo de uma forma geral não está preparado para a felicidade alheia, quando me lembrei deste texto de Bíbi da Pieve que todo mundo merece:
Felicidade dá azar
(Bíbi da Pieve – Publicado na Revista Época, ed. 334 de 2004)
Chego à estapafúrdia conclusão: ser feliz dá azar. Chama. Atrai como mosquito em lâmpada. É uma coisa meio triste de dizer, mas a felicidade dá azar.
Já vinha desconfiando havia muitos anos. Quando adolescente, lembro algumas amigas reunidas numa sorveteria, entreolhando-se ao ver passar uma espécie semelhante, porém linda - pele de pêssego, bunda arrebitada. E magérrima. "Olha ali, que magrela! Desgraçada!" - acusavam-na, sorvete doce adentro, baba amarga afora.
A desgraçada ainda namorava o menino mais popular da escola. E era rica. Não bastasse, o pai era um gato. Não que ela pudesse desfrutar dessa condição dele, mas, a essa altura, soma-se tudo de bom que há na vida da ordinária, engole-se, engasga-se, empurra-se mais um pouco, engole-se de novo. Uma vez digeridas as qualidades da outra, transforma-se aquele bolo alimentar em ódio explícito. Irrevogável.
Parece até que, se a magricela lá engordar de uma hora para outra, a gorda aqui vai emagrecer à mesma proporção. Sem dieta, claro. Simples assim: se você perder algum dinheiro, eu ganho. Se você cair, eu levanto vôo. Se você quebrar uma perna, eu viro atleta. Você menos - eu mais. Automático.
Por isso é que eu me cuido muito. Deus me livre de ser feliz; vão querer o meu fígado. Aconselho amigos a também não cometerem tal disparate e a fugir da felicidade como diabo da cruz. Caso você não saiba, ter um amigo ou parente feliz também pode ser arriscado. Fica-se contaminado: lá vai aquela filha da mãe que está feliz até as tampas pela felicidade do marido, outro sem-vergonha que subiu na vida.
E não estamos falando só da felicidade completa, que vem com o selo da alta no analista, 100%, gabaritada. Felicidade meia-boca também dá azar. Menos, é claro, mas rende um acidente doméstico aqui, um mal-entendido ali. Sabe quando bate o mindinho do pé na porta da geladeira? Pense em alguma alegria que você, distraído, deve ter cometido por aí. É batata.
Por isso os livros de auto-ajuda vendem tanto. Ninguém é louco de ser feliz. Compra-se o livro, não para deixar de frescura e cair de boca na felicidade, mas para ler no ônibus e provar ao vizinho: tira o olho, que eu sou é triste. Ninguém confessa, mas a verdadeira utilidade de ter um auto-ajuda na cabeceira é dormir em paz. Como um garoto que é abordado pela polícia e vai logo se defendendo: tô limpo! Só que a felicidade é ainda pior que a droga, não se pode portar nem para consumo próprio.
Eu me defendo como posso, e recomendo: tenha sempre uma tragédia de bolso. Pode ser muito útil. Quando menos se espera, dá o azar de você se sair bem em algum concurso, conseguir uma promoção no trabalho, arrumar um maridão nota mil. Deus o livre disso, não estou rogando praga. Mas é coisa que acontece. E aí, se você tiver uma tragédia à mão, vai ser a salvação.
Em meio aos cumprimentos naquela festa-surpresa que você não pôde evitar, é de suma importância sacar a sua desgraça. Mantenha um olhar perdido no horizonte e, quando alguém fizer a pergunta - E aí? Tá feliz? -, você ataca, todo reticente:
- É… mais ou menos… sabe, pensei tanto ontem na minha falecida tia Heleninha, que me criou… como ela estaria feliz de me ver aqui, comemorando este feito…
Isso vai acalmar os ânimos, e você deve conseguir encarar trânsito, sinais e cruzamentos perigosos até chegar a seu prédio, intacto. Ainda assim, se fosse você, eu ia pela escada. Sabe lá, esses elevadores.
Glícia não quer ter razão, só quer ser feliz. Carrega consigo ferradura, pé de coelho, olho gregos, pimentas vermelhas, galhinhos de arruda e alguns patuás. Hoje se deu ao luxo de não escrever propriamente, apenas apresentar um texto “tudibom”.
Felicidade dá azar
(Bíbi da Pieve – Publicado na Revista Época, ed. 334 de 2004)
Chego à estapafúrdia conclusão: ser feliz dá azar. Chama. Atrai como mosquito em lâmpada. É uma coisa meio triste de dizer, mas a felicidade dá azar.
Já vinha desconfiando havia muitos anos. Quando adolescente, lembro algumas amigas reunidas numa sorveteria, entreolhando-se ao ver passar uma espécie semelhante, porém linda - pele de pêssego, bunda arrebitada. E magérrima. "Olha ali, que magrela! Desgraçada!" - acusavam-na, sorvete doce adentro, baba amarga afora.
A desgraçada ainda namorava o menino mais popular da escola. E era rica. Não bastasse, o pai era um gato. Não que ela pudesse desfrutar dessa condição dele, mas, a essa altura, soma-se tudo de bom que há na vida da ordinária, engole-se, engasga-se, empurra-se mais um pouco, engole-se de novo. Uma vez digeridas as qualidades da outra, transforma-se aquele bolo alimentar em ódio explícito. Irrevogável.
Parece até que, se a magricela lá engordar de uma hora para outra, a gorda aqui vai emagrecer à mesma proporção. Sem dieta, claro. Simples assim: se você perder algum dinheiro, eu ganho. Se você cair, eu levanto vôo. Se você quebrar uma perna, eu viro atleta. Você menos - eu mais. Automático.
Por isso é que eu me cuido muito. Deus me livre de ser feliz; vão querer o meu fígado. Aconselho amigos a também não cometerem tal disparate e a fugir da felicidade como diabo da cruz. Caso você não saiba, ter um amigo ou parente feliz também pode ser arriscado. Fica-se contaminado: lá vai aquela filha da mãe que está feliz até as tampas pela felicidade do marido, outro sem-vergonha que subiu na vida.
E não estamos falando só da felicidade completa, que vem com o selo da alta no analista, 100%, gabaritada. Felicidade meia-boca também dá azar. Menos, é claro, mas rende um acidente doméstico aqui, um mal-entendido ali. Sabe quando bate o mindinho do pé na porta da geladeira? Pense em alguma alegria que você, distraído, deve ter cometido por aí. É batata.
Por isso os livros de auto-ajuda vendem tanto. Ninguém é louco de ser feliz. Compra-se o livro, não para deixar de frescura e cair de boca na felicidade, mas para ler no ônibus e provar ao vizinho: tira o olho, que eu sou é triste. Ninguém confessa, mas a verdadeira utilidade de ter um auto-ajuda na cabeceira é dormir em paz. Como um garoto que é abordado pela polícia e vai logo se defendendo: tô limpo! Só que a felicidade é ainda pior que a droga, não se pode portar nem para consumo próprio.
Eu me defendo como posso, e recomendo: tenha sempre uma tragédia de bolso. Pode ser muito útil. Quando menos se espera, dá o azar de você se sair bem em algum concurso, conseguir uma promoção no trabalho, arrumar um maridão nota mil. Deus o livre disso, não estou rogando praga. Mas é coisa que acontece. E aí, se você tiver uma tragédia à mão, vai ser a salvação.
Em meio aos cumprimentos naquela festa-surpresa que você não pôde evitar, é de suma importância sacar a sua desgraça. Mantenha um olhar perdido no horizonte e, quando alguém fizer a pergunta - E aí? Tá feliz? -, você ataca, todo reticente:
- É… mais ou menos… sabe, pensei tanto ontem na minha falecida tia Heleninha, que me criou… como ela estaria feliz de me ver aqui, comemorando este feito…
Isso vai acalmar os ânimos, e você deve conseguir encarar trânsito, sinais e cruzamentos perigosos até chegar a seu prédio, intacto. Ainda assim, se fosse você, eu ia pela escada. Sabe lá, esses elevadores.
Glícia não quer ter razão, só quer ser feliz. Carrega consigo ferradura, pé de coelho, olho gregos, pimentas vermelhas, galhinhos de arruda e alguns patuás. Hoje se deu ao luxo de não escrever propriamente, apenas apresentar um texto “tudibom”.